Jaraguá do Sul
Amanhã (23) o Teatro Sesc apresenta o filme "A França" em três horários: às 15, 17 e 20 horas.
Embora A França pareça um filme que quer ser tudo, menos discursivo, sua aposta na anti-encenação da guerra é talvez a mais forte encarnação possível do anti-belicismo na ficção cinematográfica – mais forte, até, do que a fragmentação dos discursos em Redacted ou que o teatro do absurdo de Beaufort, para ficarmos em dois filmes quase contemporâneos dele. Há no gesto de Serge Bozon de gerar o absurdo, através do deslocamento do sentido da apreensão das imagens e sons com os quais nos deparamos, que resulta muito mais eficaz como efeito de discurso. E é muito adequado que falemos de deslocamento, porque em seus vários sentidos é disso que fala A França.
Primeiro, temos o deslocamento da protagonista, Camille, mulher em meio a uma tropa francesa da Primeira Guerra (quando ainda não havia mulheres em batalhas), levada até ali pelo desesperado desejo de achar seu marido, de quem a última notícia que teve foi pior mesmo do que o sumiço: foi uma carta sucinta pedindo que ela não mais o procurasse. Há aí um primeiro deslocamento em ação em A França, um que fala dos papéis dos gêneros, das diferenças fundamentais do que se espera de homens e mulheres, algo exacerbado mesmo num momento de guerra.
Aí entramos num segundo sentido de deslocamento dentro do filme, e aqui falamos de um deslocamento físico mesmo: ao se unir àquela companhia (que encontra por acaso, em meio aos bosques, numa cena de “perseguição” de uma beleza única), Camille passa a acompanhar os soldados no que se constitui no cerne da “ação dramática” do filme – uma longa caminhada por campos que parecem sem fim, nos quais a noção mesmo de “missão”, tão cara aos filmes de guerra, parece ir se esvaindo a cada seqüência. Camille e os soldados perambulam, como zumbis (ela usa o uniforme de um soldado morto) ou animais sem rumo, e o filme perambula com eles, num ritmo cada vez mais hipnótico.
Finalmente, quando se revela o motivo principal desta perambulação da companhia (a deserção), completa-se o terceiro, e talvez maior, sentido do deslocamento dentro do filme: enquanto os homens andam para escapar de alguma coisa, Camille caminha em busca de algo. E esta diferença entre eles é a que os levará fatal e finalmente à sua separação (como já antecipava desde o começo o tenente do batalhão), depois de pela primeira vez ter levado o grupo a um momento de violência (causado pela sexualidade, e não pela guerra).
De qualquer maneira, e voltando à pergunta que fazíamos acima, o que podemos afirmar sem muitas dúvidas é que não se espera de soldados na tela do cinema que eles cantem e toquem instrumentos rústicos feitos de restos de objetos – e é justamente isso que eles fazem (entre outras coisas, claro) em A França. A imagem, talvez simplória, desta descrição é a que melhor nos ajuda a nos aproximar da principal sensação causada pelo filme de Serge Bozon (não apenas em seus momentos musicais, mas podemos dizer que principalmente neles): a do maravilhamento frente a algo nunca visto, ou no mínimo nunca visto da maneira como ele encena – e o maravilhamento é, sem qualquer sombra de dúvida, material cada vez mais escasso no cinema, e por isso mesmo pede para ser recebido com grande entusiasmo.
E por que cantam os soldados em A França? – seria uma pergunta muito pertinente desde os mais “realistas” entre os espectadores até os mais filosóficos. Eu arriscaria dizer que eles cantam porque eles sentem vontade de cantar. O que talvez soe, de novo, simplório, mas me parece a expressão mais profunda da verdade destes personagens. Porque ao dizer que eles cantam por “sentirem vontade de cantar”, não me refiro simplesmente a uma arbitrariedade da criação de Bozon através dos seus personagens (arbitrariedade esta que, de resto, é direito inalienável de qualquer criador), mas principalmente ao fato de que o canto surge em cena como expressão absolutamente impressionante de um desejo que se torna necessidade para estes personagens.
E, da mesma maneira que Bozon não precisa “explicar” a imagem de um grupo de soldados cantando (pois a poesia desta explica-se por si, em seu efeito), ele também não precisa explicar os motivos dos soldados em si, porque olhamos para eles, ouvimos suas (na maior parte das vezes, desafinadas) vozes e simplesmente acreditamos de maneira profunda na verdade desta sua vontade, desta sua necessidade do canto, deste momento que tem o peso de uma abstração, de uma reminiscência, de uma homenagem. E, quando bem mais à frente descobrimos que aqueles soldados são desertores de guerra, aí podemos ver o seu canto como gesto político: cantar para não mais atirar, cantar por não mais atirar, pelos que ficaram para trás.
E, da mesma maneira que Bozon não precisa “explicar” a imagem de um grupo de soldados cantando (pois a poesia desta explica-se por si, em seu efeito), ele também não precisa explicar os motivos dos soldados em si, porque olhamos para eles, ouvimos suas (na maior parte das vezes, desafinadas) vozes e simplesmente acreditamos de maneira profunda na verdade desta sua vontade, desta sua necessidade do canto, deste momento que tem o peso de uma abstração, de uma reminiscência, de uma homenagem. E, quando bem mais à frente descobrimos que aqueles soldados são desertores de guerra, aí podemos ver o seu canto como gesto político: cantar para não mais atirar, cantar por não mais atirar, pelos que ficaram para trás.
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