sexta-feira, 22 de julho de 2011

Noite de Estreia

Jaraguá do Sul

Por Rodrigo Carreiro

Amanhã às 20 horas, o Teatro Sesc Jaraguá recebe o filme "Noite de estreia".

Myrtle Gordon (Gena Rowlands) é uma prima-dona. Todos os profissionais que convivem com a atriz, personagem principal de “Noite de Estréia” (Opening Night, EUA, 1977), medem as palavras antes de se dirigir a ela. Eles se desdobram para evitar que a insegurança crônica a fragilize, e a cercam de elogios, muitas vezes ditos só da boca para fora. Todos repetem que a amam. Vivem lhe abraçando e beijando, porque sabem que ela adora contato físico. Tantos paparicos não impedem que Myrtle afunde mais e mais em crise pessoal, à medida que aprofunda os ensaios de uma nova peça, com estréia marcada para Nova York dentro de alguns dias.

“Noite de Estréia”, nono trabalho assinado por John Cassavetes, é muito mais do que o brilhante e minucioso estudo de personagem sugerido pela superfície do filme. Trata-se de um daqueles títulos que oferecem inúmeras possibilidades de leitura, diversos ângulos de abordagem. Para alguns, o filme pode ser sobre o medo da velhice; para outros, uma meditação metalingüística sobre a relação entre ator e personagem (quem conhece a obra de Cassavetes sabe o quanto esta relação era fundamental para ele). Há quem veja no colapso de Myrtle, cuja intimidade o filme desnuda com firmeza e profundidade desconcertantes, uma reflexão sobre o tema predileto do diretor, o amor (no caso, a falta dele).

São todas leituras válidas. Existem outras possibilidades, todas densas, inteligentes, vivas. “Noite de Estréia” é um filme maduro de um dos maiores criadores do cinema norte-americano. Foi achincalhado injustamente pela crítica na época do lançamento original, e só muitos anos depois (mais precisamente após a morte de Cassavetes, em 1989) reabilitado. A multiplicidade de significados confere à produção um lugar especial na galeria dos melhores trabalhos do cineasta. Considerando a altíssima qualidade geral da obra do diretor, não é pouca coisa. De qualquer forma, é preciso coragem – por parte do público – para mergulhar com vontade na crise de meia-idade vivida pela personagem principal, interpretada com a intensidade e a exuberância que sempre caracterizaram Gena Rowlands, esposa de Cassavetes e atriz de envergadura gigantesca.

Para os personagens do longa-metragem, a crise de Myrtle é inexplicável. Entre afagos e elogios insinceros à estrela, o trio de ferro da peça (formado por diretor, produtor e autora, mais dois atores com quem ela forma um triângulo amoroso no palco), eles quebram a cabeça para compreender as causas do colapso nervoso da atriz. Para a platéia, que observa a intimidade da mulher de lugar privilegiado, o problema é claro como água. Apesar de afirmar que não consegue captar a alma do personagem, a situação é exatamente inversa. Myrtle se reconhece por inteiro no papel, e não gosta do que vê: uma mulher de meia-idade que perdeu a beleza e não consegue mais despertar desejo sexual nos homens. Temendo que representar a si mesma revele sobre ela mais do que gostaria, a atriz afunda em depressão.

A partir da fantástica atuação de Gena Rowlands, Cassavetes reflete sobre o medo da velhice e as conseqüências negativas da idade nas pessoas dependentes da beleza física. Quando Myrtle se vê forçada a encarar a situação, começa a se dar conta de que a melhor parte da vida dela já passou, e que o futuro que lhe aguarda será solitário, sem marido ou filhos – ou seja, sem amor. Cassavetes maneja a situação de maneira astuta, mergulhando na dor da protagonista sem, no entanto, verbalizá-la. Desta forma, a platéia e os demais personagens imaginam que a atriz está tendo um colapso nervoso, quando a verdade é bem diferente.

Na verdade, Myrtle não está nem perto de perder a lucidez, e deixa isto evidente quando, numa discussão aberta com a equipe, já perto do final do filme, faz uma pungente e dolorosa auto-análise da situação. “Meu problema não é interpretar bem. Eu sei interpretar uma velha. Mas se eu fizer o papel deste modo, terei arruinado minha carreira. Porque o público vai passar a me aceitar como velha e eu não mais receberei bons papéis”, raciocina, em momento agressivo que dispara contra a política de Hollywood para atrizes acima dos 40 anos. Está aí mais uma leitura para a sombria jornada íntima de Myrtle. Ao lado da Mabel de “Uma Mulher Sob Influência” (1974), também interpretada por Rowlands, Myrtle é a personagem mais complexa e fascinante da obra de Cassavetes.

Como se não bastasse tantas virtudes, “Noite de Estréia” também trava um dos mais instigantes diálogos entre teatro e cinema já registrados em película. Para poder acompanhar de perto o sofrimento da estrela, a câmera de Cassavetes invade o palco e as cochias sem constrangimento, muitas vezes sem anunciar à platéia quem está em cena, se Myrtle (a atriz) ou a personagem que ela interpreta. A fotografia, de Al Ruban, é elegante e sombria, um pouco distante da crueza que marca a maior parte da obra de Cassavetes, mas ainda despojada, e enfatiza com perfeição a simplicidade da trama, que é conduzida com segurança e mão firme pelo diretor.

Às vezes parece que Cassavetes vai embarcar em alguma maluquice (Myrtle tem visões de uma garota morta e vai a sessões espíritas), mas nenhuma dessas cenas termina como um filme comercial faria. “Noite de Estréia” é sempre imprevisível e estimulante. O crítico Roger Ebert diz que Cassavetes parece, em seus títulos, levantar a cortina de uma peça que já estava rolando. Esta descrição aplica-se quase literalmente a “Noite de Estréia”, e eu acrescentaria que, ao baixar a cortina, o cineasta sugere que a peça vai continua acontecendo. É exatamente por isso que os filmes dele passam vívida impressão de mostrarem a vida, ao vivo e a cores. Quem gosta disso tem aqui material para se esbaldar.

O DVD nacional leva o selo da Cinemax e é baseado na edição norte-americana da Criterion Collection, com excelente qualidade de imagem (widescreen 1.85:1 anamórica) e áudio (Dolby Digital 1.0), mas sem os extras desta última.

- Noite de Estréia (Opening Night, EUA, 1977)
Direção: John Cassavetes
Elenco: Gena Rowlands, Ben Gazzara, John Cassavetes, Joan Blondell
Duração: 144 minutos

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