segunda-feira, 22 de agosto de 2011

A França

Jaraguá do Sul

Amanhã (23) o Teatro Sesc apresenta o filme "A França" em três horários: às 15, 17 e 20 horas.

Embora A França pareça um filme que quer ser tudo, menos discursivo, sua aposta na anti-encenação da guerra é talvez a mais forte encarnação possível do anti-belicismo na ficção cinematográfica – mais forte, até, do que a fragmentação dos discursos em Redacted ou que o teatro do absurdo de Beaufort, para ficarmos em dois filmes quase contemporâneos dele. Há no gesto de Serge Bozon de gerar o absurdo, através do deslocamento do sentido da apreensão das imagens e sons com os quais nos deparamos, que resulta muito mais eficaz como efeito de discurso. E é muito adequado que falemos de deslocamento, porque em seus vários sentidos é disso que fala A França.

Primeiro, temos o deslocamento da protagonista, Camille, mulher em meio a uma tropa francesa da Primeira Guerra (quando ainda não havia mulheres em batalhas), levada até ali pelo desesperado desejo de achar seu marido, de quem a última notícia que teve foi pior mesmo do que o sumiço: foi uma carta sucinta pedindo que ela não mais o procurasse. Há aí um primeiro deslocamento em ação em A França, um que fala dos papéis dos gêneros, das diferenças fundamentais do que se espera de homens e mulheres, algo exacerbado mesmo num momento de guerra.

Aí entramos num segundo sentido de deslocamento dentro do filme, e aqui falamos de um deslocamento físico mesmo: ao se unir àquela companhia (que encontra por acaso, em meio aos bosques, numa cena de “perseguição” de uma beleza única), Camille passa a acompanhar os soldados no que se constitui no cerne da “ação dramática” do filme – uma longa caminhada por campos que parecem sem fim, nos quais a noção mesmo de “missão”, tão cara aos filmes de guerra, parece ir se esvaindo a cada seqüência. Camille e os soldados perambulam, como zumbis (ela usa o uniforme de um soldado morto) ou animais sem rumo, e o filme perambula com eles, num ritmo cada vez mais hipnótico.

Finalmente, quando se revela o motivo principal desta perambulação da companhia (a deserção), completa-se o terceiro, e talvez maior, sentido do deslocamento dentro do filme: enquanto os homens andam para escapar de alguma coisa, Camille caminha em busca de algo. E esta diferença entre eles é a que os levará fatal e finalmente à sua separação (como já antecipava desde o começo o tenente do batalhão), depois de pela primeira vez ter levado o grupo a um momento de violência (causado pela sexualidade, e não pela guerra).

De fato, pela forma como (não) lida com a violência da guerra em cena, A França nos faz constantemente perguntar: o que se espera de soldados numa tela de cinema? Que eles lutem e atirem, sem dúvida, nos responderiam anos e anos de cinema de ficção sobre a guerra; ou então, que pelo menos treinem para lutar (Nascido para Matar e tantos outros) ou nos convençam do absurdo da guerra pelo envolvimento em atos espúrios em nome dela (lembremos de Pecados de Guerra ou do recente Redacted, ambos de DePalma). Em todas as opções acima, porém, seja da mais espetacular à mais intimista, o que está em questão sempre é a violência da guerra e as várias formas de colocá-la em cena, de representá-la pela ficção – questão ainda mais premente uma vez que a imensa maioria dos “filmes de guerra” se referem a acontecimentos reais (como, aliás, a Primeira Guerra).

De qualquer maneira, e voltando à pergunta que fazíamos acima, o que podemos afirmar sem muitas dúvidas é que não se espera de soldados na tela do cinema que eles cantem e toquem instrumentos rústicos feitos de restos de objetos – e é justamente isso que eles fazem (entre outras coisas, claro) em A França. A imagem, talvez simplória, desta descrição é a que melhor nos ajuda a nos aproximar da principal sensação causada pelo filme de Serge Bozon (não apenas em seus momentos musicais, mas podemos dizer que principalmente neles): a do maravilhamento frente a algo nunca visto, ou no mínimo nunca visto da maneira como ele encena – e o maravilhamento é, sem qualquer sombra de dúvida, material cada vez mais escasso no cinema, e por isso mesmo pede para ser recebido com grande entusiasmo.

E por que cantam os soldados em A França? – seria uma pergunta muito pertinente desde os mais “realistas” entre os espectadores até os mais filosóficos. Eu arriscaria dizer que eles cantam porque eles sentem vontade de cantar. O que talvez soe, de novo, simplório, mas me parece a expressão mais profunda da verdade destes personagens. Porque ao dizer que eles cantam por “sentirem vontade de cantar”, não me refiro simplesmente a uma arbitrariedade da criação de Bozon através dos seus personagens (arbitrariedade esta que, de resto, é direito inalienável de qualquer criador), mas principalmente ao fato de que o canto surge em cena como expressão absolutamente impressionante de um desejo que se torna necessidade para estes personagens.

E, da mesma maneira que Bozon não precisa “explicar” a imagem de um grupo de soldados cantando (pois a poesia desta explica-se por si, em seu efeito), ele também não precisa explicar os motivos dos soldados em si, porque olhamos para eles, ouvimos suas (na maior parte das vezes, desafinadas) vozes e simplesmente acreditamos de maneira profunda na verdade desta sua vontade, desta sua necessidade do canto, deste momento que tem o peso de uma abstração, de uma reminiscência, de uma homenagem. E, quando bem mais à frente descobrimos que aqueles soldados são desertores de guerra, aí podemos ver o seu canto como gesto político: cantar para não mais atirar, cantar por não mais atirar, pelos que ficaram para trás.

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